A tarde moveu-se pelas horas, logo a seguir ao almoço. Vinha lenta - alquebrada por uma obesidade de abafos, trespassou-nos a todos antes de se sentar. Espraiado sobre a relva, fui-me deixando estar. Diluíu-se na atmosfera a respiração dos animais. E as brisas frescas sopraram o meu corpo incandescente, como uma pedra ao sol - só que, em vez de imóveis, as arestas de carne vibraram vivas e desconcertadas. como se do meio das árvores, não anunciados: um beijo de ternura e um abraço de água.
Oh, minha noite de sempre, eterna vigília a que me fazes, as chuvas que conjuras, os teus incêndios de vento - são percussão, são melodia com que danças para mim, coreografias de lamento. Quando ainda assim te viro as costas e te abandono no perdão vens, persistente, tamborilar-me a janela com os teus dedos finos, como agulhas de gelo. e a voz húmida com que cantas, sinto-a vibrar ao pé de mim - o hálito silvestre - doce e febril! Porque sofres, afinal? Foste tu quem me abandonou aos braços dos homens. Ergueste-me em ossos, atafulhaste-me de carne e o eu, esse deste-mo dos recantos mais fundos de ti. Sabe que só te abro a janela se me levares de volta e de vez, às profundidades do teu ventre negro. E me deixares ser água e vento, montanha, lua, estrela. ... Leva-me então, que me fique a consciência, prometo ser a árvore mais calada das tuas planícies de silêncio. A ramagem alta que, defronte aos astros, se cumpre sem o saber.
Íris, a abóbada luminosa, de estrelas incrustadas, esse ermo de fantasia, onde em chamas comungamos, rachou no apogeu.
das entranhas celestes, agora a descoberto, um feixe vermelho verte na vertical perfeita - é este o signo da danação: de sangue divino, encharcam-se-me as costas.
ocorre-te agora, o sabor acre da maldição? não o demores na boca - o que é inevitável é o que tem de ser. tens ainda tempo para o resto que não eu. mergulha na vida que te sobra.
rápida, que a titânica esfera que se segue - granito incandescente - jamais quatro ombros a carregarão. é nas chagas dos meus dois que, completa, ela assenta.
não te demores - a sombra que de mim se derrama é a negritude corrosiva que a luz do desastre entorna no chão.
rápida, que o lírio já morreu.
fecho os olhos e afundo-me em mim. que a realidade onde ardo seja agora de um fogo que é meu - brando, morno, generoso. que o silêncio onde me aninho seja, afinal, o jardim lamacento onde um lírio de rebelião possa brotar: que os dias - armadilhados de espinhos não te curvem. que os dias - coroados de alegrias te definam. que esse teu inimigo que te povoa de dentro da carne seja o de um combate que um dia vais vencer. foste tu quem abdicou de um deus. que a solidão dessa decisão, não te consuma. consome-a tu.
nas montanhas do norte, eriçadas ao céu, há um vale profundo que uma serpente de água decide cavar à passagem, como sempre o fez. serpente efémera de eterna renovação cujos segmentos estagnam e aceleram na formação do seu movimento perene. absorvo o segredo inviolável da vida - coabitação ancestral - matrimónio inocente e absoluto. mergulho nas águas - as árvores sobre os dorsos montanhosos, celebram a vida - oscilam festivas. em queda oblíqua, as chuvas repicam o caudal - verde, baço, vítreo, e a serpente acorda desse movimento adormecido. tremumlam-lhe as escamas de cristal. decido trespassar-lhe a substância, até esse âmago incorrupto. flutuo à superfície, de braços abertos e olhos cerrados. sou um grão de humanidade no seio puro dos silêncios naturais. tormentos existenciais, são de um momento que não é este. existo sem consciência humana - a eterna aflição. o coração abranda, a paz floresce. abdico do que de humano há em mim. abraçado por uma força milenar, transmuto-me numa flor aquática: e nunca fui tão nada. e nunca fui tão completo.
"E então, eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação. Que eram, pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das teclas, as pernas na distância dos pedais e toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção. Apertas ligeiramente a boca, pões uma rugazinha na testa, estremeces brevemente a cabeleira loura com o teu laço vermelho. E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas. Toca uma vez ainda, Cristina. Agora,só para mim. Eu te escuto, aqui, entre os brados deste vento de Inverno. Chopin, Nocturno nº20. Ouço, ouço. As palmeiras balançam no teu jardim, a noite veste-se de estrelas, adormece na planície. Donde este lamento, esta súplica? Amargura de sempre, Cristina, tu sabe - la. Biliões e biliões de homens pelo espaço dos milénios e tu só, presente, a memória disso tudo e a dizê-la..."
aparição, Vergílio Ferreira
que a música nunca foi a resposta ao mistério, mas sim a sua breve iluminação - esse indizível. a evidência violenta, para sempre inacessível na sua forma absoluta, cuja perceção, ainda que ténue, nos inunda de prodígio, de inspiração - comungamos com o cosmos em linguagens quiméricas.
Já não confio
no que nasce de dentro de mim
como reflexo de certas vivências.
Familiar essência em novo corpo.
Mas já nada é como antes, sou terra enxuta para que as ilusões morram rentes.
E se a vida não vier contra mim,
então que me passe ao lado,
acelerada, com o mundo inteiro dentro dela.
Atrás, sobrará um exército de renegados
com os quais marcharei, em sentido inverso,
até ao negrume da noite perene.
"A melodia enche o silêncio da casa, enche todo o meu passado que a procura. Toda a terra vibra nela, todo o universo se explica numa palavra final. A mais alta, a mais profunda. Mas não sou eu que a faço vibrar, é ela só que a si mesma se diz. Música áspera a minha, na dificuldade dos dedos, da arcada certa e nítida, outra música para lá dela se subtiliza ao meu ouvido até ao silêncio final onde se perde a aspereza da minha execução. Que palavra se diz neste dizer? não a sei. Sei apenas que esse silêncio se preenche de tudo o que não sei dizer nem sobretudo me apetece dizer. Como uma rede que sustivesse todas as impurezas, o fio da água passa e a sua pureza me comove e só ela me existe. Fecho a caixa do violino, fecho a janela. Desço de novo à sala, olho ainda a tarde que se apaga. E é como se eu próprio me evolasse com essa tarde e de mim ficasse o que útil e necessário me sustentasse o viver. Tudo tão pouco - que é que resta- sempre de uma vida humana? Mesmo a dos heróis, dos grandes génios da arte e do saber. Depositaram a grandeza que foi sua, o que lhes fica e o nada que os sustenta, a miséria de um corpo que se extingue. Toda a convulsão de uma vida, aguentada agora com uma breve ideia, um frágil apoio, o vazio de si. A vida realiza-se multiplicadamente com a realização de quem a realiza. Com esse nadaou esse tudo se colabora na sua diversificação. Estou só - estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. Que te dá pensares-te o ramo que se suprimiu? A árvore existe e continua para fora da tua acidentalidade suprimida. O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tuagrandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Há uma palavra qualquer que deve poder dizer isso, não a sabes t- e porque queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério e que o mistério conhece - não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais eo eco de uma música em que ele se reabsorva. Pensa-o ardentemente,profundamente, absolutamente. Não és grande, terás apenas a mania das grandezas? Como queres igualar-te ao imenso e imperscrutável? O dia acaba devagar. Assume-o e aceita-o. E a palavra final, a da aceitação. Só os loucos e os iludidos a não sabem. Não sou louco. Não são horas da ilusão. Vou fechar a varanda. Tenho de ir avisar a Deolinda. É uma tarde quente de Agosto, ainda não arrefeceu. Pensa com a grandeza que pode haver na humildade. Pensa. Profundamente,serenamente. Aqui estou. Na casa grande e deserta. Para sempre."