terça-feira, novembro 20, 2007

Prefácio

O inverno chegara e todas as coisas se recolhiam em si próprias: os paralelos plastificados das ruelas motorizadas, os lampiões corcundas, de luz tépida, os néon difusos das lojas da baixa, as pombas sem pescoço, indiferentes ao pão empapado em água, preso nas frestas da calçada, os bancos avermelhados, botos e esfiapados, soldados obstinados dos jardins vazios... Os poetas de café, toldados de fumo de cigarro, na mão a caneta, dentro deles mais um combate, amantes do impossível. Os posters de publicidade por trás das vidraças grossas nas paragens de autocarros
(dentes brilhantes, paradoxais nesta tarde cinzenta), o fumo dos escapes, enovelado pelo ar e em ascensão. Um gemido de frio sob o cinzento lacrimoso do céu... Tudo se enroscava em si mesmo, semi-adormecendo num qualquer calor interior... Uma candidez absurda!.. Corações melancólicos... era feita de ternura, por isso mesmo, essa tarde de domingo.
A minha mão abandonada no teu ombro magro, sobre a bombazina clara do casaco que te oferecera nos anos. Já o gastaras tanto nos dias, tal era o querer que lhe tinhas que este se tornara numa outra pele onde o teu perfume humano encontrava uma segunda casa... e eu sei-o de nariz, sei-o de embriaguez,eu sei-o de punhos cerrados, de loucura, de saudade... Existem cheiros que me esgarçam feridas, porque o cheiro é o sentido que mais apela ao desejo, como se estivesses aqui e eu, convicto de ti, te procurasse , alucinando sobre as arestas da cidade.
A minha mão no teu ombro, queimada de frio. Por vezes procurava o apelo de calor que o teu pescoço prometia mas, nessa altura, torcias os lábios e cerravas os olhos: Pára que me arrepias! – dizias tu, e quando olhavas para o lado, pronta para me trincares a mão, eu encostava o meu nariz gelado no outro lado e aí ganhava-te no engenho... Pára! – berraste tu, fula por calcares a armadilha. Acalmei-te com um sorriso e com a promessa de uns lábios que te restabelecessem o calor roubado, e tu, na antecipação do beijo, rasgaste um sorriso que ainda hoje recordo com uma claridade absoluta... lembro-me do ladrilhado dos teus lábios secos, pequenos losângulos lisos, lapidados pelo inverno seco do ano do nosso amor. .. e lembro-me do teu cheiro, sempre o teu cheiro, o que de ti era humano e se escapava no vento. Já vos disse? Como eu a procuro pelos quelhos da cidade, de nariz emproado, vencido sempre pela fadiga? A crueldade do teu cheiro...
Beijei-te serenamente, abracei-te de força e bebi com violência o aroma quente da tua pele, fiz do teu corpo cobertor até sentir nos lábios os poros da tua pele, empolados. O frio aniquilado e só o desejo ritmado em respirações vaporosas que nos escaldavam os pulmões. Ah, o mistério da vida, sentir, num terço de um minuto, a plenitude necessária para justificar uma vida inteira...

Foi então que brilhaste... quando me afastei tinhas os cantos dos lábios queimados, a carne viva que o plasma fazia brilhar; a pele das narinas estava ferida e ainda emanava um fio de fumo ténue, livre de cheiro. Do lóbulo da tua orelha esquerda uma gota dourada soltara-se e um silvo de lume soou quando te tocou o pêlo do carapuço. Uma chama deflagrara, e eu, aterrado, abafei-o com a manga da minha camisola. Quando te olhei, de queixo pendido, não percebi bem o que se estava a passar e foi por assombro que não te segurei enquanto caías. A íris dos teus olhos deixara de existir e em vez dela, uma circunferência luminosa grossa, de textura líquida. Na pupila, um núcleo alaranjado rodava lento e silencioso.

Havias de parir uma estrela e ao fazê-lo, tornaste-te luz.