segunda-feira, maio 22, 2006

Este ougar interior...

Uma carícia imaterial afaga o cabelo da seara e o silêncio que se estende é picotado pelo som dos animais que celebram o sol. Lá ao fundo escuto a turba das ondas que colidem e desistem cansadas na costa de orla dourada e quase que provo o areal salgado que docilmente se embriaga com a espuma que lhe é oferecida… As árvores altas que explodem no topo esticam os braços frutíferos pelo espaço, e nesses frutos a luz deflagra quando o sol lhes lambe a casca húmida. O perfume humilde da terra que no peito, sustenta a existência dos seres que a aceitam nas raízes, nas mãos, na boca, na alma. Nos meus olhos húmidos o reflexo das aves de rapina que, lá em cima, entrançam as garras afiadas num modo de brincar e logo as soltam para mergulhar na íris do sol.

Aqui jaz o meu corpo, envolvido por muralhas de trigo vergadas pelo vento. A luz cola-se ao meu corpo e semeia o calor; e o calor floresce e um fio ténue de suor desliza pelo peito. Uma borboleta aproxima-se sem que o silêncio se ressinta. Traz, na fragilidade das asas, um roxo rosado, pintalgado por um azul aquoso… como poças de água numa planície de mármore.

Esses passos…onde estás?... Sinto-te a caminhar, perto de mim. Procura-me com paciência, por favor. Sei quando estás perto, sei-o porque, nessa altura, o meu coração se encolhe e o meu peito incha, sei-o porque os meus olhos se incendeiam e a minha boca seca e os meus punhos se cerram e o meu dorso arqueia. Se me encontrares ensanguentado, não temas, porque no teu beijo há a salvação de todas as feridas. Por isso não desistas, pois se em mim te estenderes, viverás, para sempre, amada.

Estarás perto?... Quem tu és?




quarta-feira, maio 10, 2006

Lapa, à hora dos funerais




Na cidade
uma torre
de granito

Na rua
a um dia
sucede um outro dia

Pela tarde
os sinos
trá-los o vento ao sotão

lembram
as horas que passam

toda a solidão do mundo


João Pedro Mésseder




Um sotão de madeira e cimento; a luz, filtrada pelas nuvens grossas e escuras, espalha-se em nevoeiro. Vejo-te no centro, debruçado sobre a folha branca. Desligaste o rádio para que a efervescência das pessoas que cruzam as ruas, lá em baixo, te endureça o coração e torne a escrita um impulso premente. Hesitas a mão, o mínimo de certeza antes de qualquer coisa... De repente o dobrar dos sinos, lânguidos e desprendidos, anexados ao vento que rompe pelas frinchas propositadas dessa janela inclinada. Sentes uma enorme pena de ti mesmo e essa auto-comiseração mete-te nojo mas é te impossível fugir-lhe, sabes isso tão bem...

E é então que decides o poema com uma lágrima... que não choras.